quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Onde tudo Começou ... Mestre Pastinha


Mestre Pastinha

Vicente Ferreira Pastinha, nasceu na Bahia – é obvio. Nasceu no ano da Proclamação da República 1889, - um ano após a Lei Áurea – veio ao mundo numa atmosfera pesada, não por poluição, por preconceitos, por um mercantilismo que não excluía o homem nas suas ambições. Filho de um espanhol, José Señor Pastinha, e de um negra, Raimunda dos Santos, aquele moleque, baixinho, de pernas curtas, seria o maior capoeirista que toda a Bahia conheceu.
Capoeira, fora qualquer pulsilaminidade de interpretação, naquele tempo tinha um caráter classista. Era a luta dos escravos, "classe" dominada, luta que nasceu da necessidade de defesa, de fuga das chicotadas. A performance da luta é explicada pelo ambiente e pelas condições místicas da época.
FILOSOFIA
O caráter de dança, o inusitado de suas variações coleantes, nada mais são que o produto de um desenvolvimento às escondidas. O patrão jamais, soube que naquelas danças e vocações estava contido o elemento agressividade.
Muito mais que um simples jogo de pernas para agradar turistas, a capoeira é uma filosofia, é um sistema filosófico, ético, estético, e, principalmente moral. Na acepção de Pastinha "capoeirista é um gênio, Capoeira é sobre tudo muita intuição, vem do subconsciente".
O capoeirista tem normas que regem o seu comportamento. Jamais deve provocar alguém, nunca utilizar sua luta para agredir, sempre defender. Em uma rua escura, deve andar sempre no meio, nunca pelo passeio. A "malícia" é essencial no capoeirista, isto ao lado dos seus reflexos que devem ser, de todo, ágeis.
Conversar com Pastinha é sentir unidade. Jamais alguém terá compreendido o que é a Capoeira sem Ter conversado com ele. Sentir que, antes de tudo, é muito amor que tempera a luta, que o respaldo filosófico é essencial na integração do capoeirista, e que, existe uma "ideologia" própria da Capoeira, é essencial para compreensão e aceitação da luta.
INÍCIO
Tudo começou aos oito anos, no Pelourinho, Bahia. Aquele molecote, desajeitado, de pernas curtas, baixinho, cabeça grande, estava sendo massacrado por outro moleque. Foi aí que mestre Benedito, um negro africano que morava nas Rua das Laranjeiras, chamou-lhe e ensinou-lhe sua arte: a Capoeira. Não precisa nem dizer o que Pastinha fez do seu rival, e, desde essa época, muita gente conheceu a agilidade do Mestre, desde o policial ao malandro passaram pelos rabos de arraia daquele que foi, um dos poucos a jogar de fraque, cartola e roupa branca.
No início tudo era marginalização, a Capoeira relegada ao mais "baixo" setor da população, uma prática somente para malandro, para marginal. Besouro Cordão de Ouro, lá por Santo Amaro, pintava e bordava em cima das autoridades e senhores de engenho. Tudo isso com a ajuda do seu "corpo fechado" e da Capoeira, da qual, ele não chegou a ser um exímio lutador.
A Bahia vivia um clima de muito conteúdo místico, de grandes estórias de amor, o clima dos personagens de Jorge Amado. Pastinha conheceu rosa do Palmeirão – romance Mar Morto de Jorge Amado - "Palmeirona", como ele chama. Muitos casos de amor tiveram no "Seu" Quiosque na ladeira da Praça, onde Rosa ia freqüentemente visitá-lo. "Era realmente aquela mulher braba, portava navalha, batia em polícia e dormia com muita gente grande da época. Seabra, Calmom e outros políticos protegiam ela". Palmeirona ou "Rosa do Palmeirão" está morta. Morreu também com ela o movimento dos saveiristas no cais do porto. No cais morreu com desejo de ser mãe, criando o filho de Guma, aquele amado moreno, gosto de água do mar, sabor de "sodade".
Introduzindo a Capoeira na sociedade, com sua Academia no Pelourinho, Pastinha foi o responsável pela disseminação da popularidade da luta. Todos queriam conhecer o que era aquilo, que diabo tinham aqueles homens no corpo, aquela elasticidade impressionante. No entanto, tendo-a introduzido na sociedade, Pastinha nunca foi o responsável por esta onda de despersonalização da luta, jamais deu diploma aluno com apenas três meses de fixação de algumas seqüências. Na voz do Velho Pastinha se pode notar o rancor que ele tem de muito filho de "doutor" que tem por aí, despersonalizadores que reduziram a luta a um completo estilismo, que foge de sua raiz mais pura: o povo que a criou.
Pastinha não esconde seus sofrimentos materiais e espirituais. Materiais: viver em cubículo imundo, com filhos e netos, com a ajuda ínfima de 300 cruzeiros dada pelo Poder Público, que em troca, pediu-lhe, ou melhor, tomou-lhe o seu amor, sua fonte de vida, de saudade, de sonhos e fantasias, todos seus Orixás, brutalmente sem dó, mataram do Velho, esta Bahia de Verdades, o maior prazer que tinha na vida: lecionar Capoeira, como só ele sabe ensinar. 60 anos de ensino.
"Não passo fome por que Jorge Amado, Wilson Lins e meus amigos, me dão alguma coisinha", assim respondeu Pastinha à sua pergunta feita. Sua academia é promessa que nunca se cumpre, sua vida é coisa que está chegando ao fim. Talvez morra sem Ter o direito de revê-la com os olhos do coração, ou quem sabe, ele morra de alegria de ver algo que, praticamente, tornou-se impossível: sua Academia.
Espiritualmente é a mágoa dos "meninos", ou filhos de "doutor", que estão matando o folclore e querendo matar Pastinha. Quando aqui chegam turistas há capoeiristas que afirmam que o mestre já deixou a Capoeira. "Querem me matar, dizem até que deixei a Capoeira". Por que alienar Pastinha de uma atividade que se confunde com a sua existência? Essa é a sua felicidade.
Pastinha não só acredita no fantástico como já participou dele. O Diabo não é novidade para ele, já o viu, na Academia, lá no Pelourinho onde estava "preso por um trabalho". "É muito pequeno, não passa de um dedo mínimo, tem a cabeça enorme e é careca", estava ao seu pé, num dia em que estava tocando atabaque.
Quem o cegou foi uma aparição, uma mulher. Tinha voltado da Concha Acústica, de onde vinha de uma apresentação, em que um homem, não sabe de onde, o acompanhou durante toda a noite. "No outro dia em que acordei pela manhã, não consegui me manter em pé, sempre caía, eu apelei para Oxalá e tornei a me manter em pé e foi aí que eu vi "aquela mulher" não tinha olhos, era só a broca, dois buracos, desse dia para cá jamais voltei a enxergar".
É assim o realismo de Pastinha, a realidade e o fantástico se interpenetram, desaparecendo as fronteiras entre o real e o imaginário. As visões lhe aparecem sem que, com isto, elas tenham o caráter de alucinação ou mesmo irrealidade, um mundo completo de sensações e parasensações, um metaconhecimento das propriedades que tanto negamos ou afirmamo-las demais.
O Mestre está só, sozinho com o conhecimento absoluto de sua filosofia. A ninguém ensinou tudo que sabia a velha estória do gato, que ensinou todos os golpes à onça, menos um, para se conservar mestre. Somente João Grande e João Pequeno sabe a maioria dos golpes de Pastinha, que ensinou de acordo com a fama de cada um, colocando-os em equilíbrio, de modo a um nunca ultrapassar o outro.
Hoje o velho está só. Apenas ele com sua mágoa, saudades, aparições e com uma vontade enorme de Ter sua Academia e poder manter os seus netos. Pastinha pode morrer a qualquer momento, sem de novo ver o seu lugar de origem. E se Pastinha morrer? Quem vai contar suas dores? Será o Gabriel arcanjo ou o Gabriel herege que irá contar os seus 84 anos de solidão?

Ruy Penalva

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